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Alex Li Trisoglio

Aspiração: Semana 5 – Perseverança 

13 de abril de 2024
56 minutos

Referência: Rei das Preces de Aspiração de Samantabhadra, versículos 22 – 27

Video / Transcrição

Tradução para o português por Alvaro Luis Campos

Introdução à Semana 5

Bem-vindo

Olá e bem-vindo à Semana 5 de nossa revisão dos ensinamentos de Dzongsar Khyentse Rinpoche sobre o Rei das Preces de Aspiração de Samantabhadra, o Pranidhana-Raja. Na imagem desta semana vemos a figura solitária de um praticante caminhando por um caminho através de terreno difícil e implacável. Há uma montanha à frente, majestosa mas assustadora, que representa o seu objetivo final, talvez a própria iluminação. A viagem não é para os fracos de coração. É um caminho repleto de obstáculos. No entanto, é o próprio desafio da escalada que fortalece o nosso espírito. Quantas vezes nos encontramos em um caminho semelhante em nossas vidas, onde o objetivo parece distante e o caminho árduo? 

Ao iniciarmos a Semana 5, vamos refletir sobre esta imagem. O que a montanha à frente simboliza para você em sua prática? Como o progresso constante da figura, passo a passo, repercute em sua própria jornada? E o mais importante: quando o caminho se torna íngreme e o terreno incerto, o que é que nos impulsiona para frente? Vamos explorar as profundas reservas de perseverança que existem dentro de nós e descobrir como aproveitá-las, assim como faz o praticante nesta imagem, com foco inabalável no caminho a seguir. 

Então, como sempre, vamos reservar um momento para sintonizar a nossa motivação para esta semana, nos lembrando que desejamos abordar o nosso tempo juntos com a bodhichitta, a aspiração de que possamos alcançar a iluminação para iluminar todos os seres. 

[Pausa]

Temas chave

O título da Semana 5 é Perseverança, e os versículos desta semana cobrem dois, talvez dois e meio, temas principais:

  • 1) Lidar com desafios e contratempos no caminho: Sabemos que dificuldades, contratempos e decepções são uma parte inevitável do caminho do bodhisattva, na verdade, de qualquer caminho em que estejamos tentando realizar algo significativo e que valha a pena. Então, como o bodhisattva pode encontrar uma maneira de lidar com esses desafios sem desanimar e perder a inspiração? 
  • 2) Relacionar-se com outras pessoas no caminho: Já começamos na semana passada a explorar a ideia de como ser um amigo espiritual, incluindo o adorável exemplo do bodhisattva do YouTube de Rinpoche. Os versículos desta semana abordarão esse tópico com mais profundidade. Como o bodhisattva deve se relacionar com os outros no caminho, especialmente quando eles podem nos parecer a fonte de algumas das dificuldades e desafios que enfrentamos? 
  • 3) Purificando nossa percepção: Este é um tema que se tornará mais importante nas próximas semanas, mas já nesta semana estamos chegando aos versos que falam sobre ver Budas e receber ensinamentos em todos os momentos. Então, como podemos começar a refinar e purificar a nossa percepção? Vamos apresentar este tema esta semana, mas não nos aprofundaremos muito, por isso estou dizendo que talvez cobriremos dois temas e meio. 

Revisão das etapas do caminho

Em termos da estrutura dos versículos desta semana, vamos rever onde estamos no texto. Após uma introdução na Semana 1 e discussão sobre os benefícios de recitar esta prece na Semana 2, passamos pelas práticas iniciais da oferenda dos sete ramos na Semana 3 e iniciamos a aspiração real na semana passada, na Semana 4. 

Na semana passada vimos como o praticante progride ao longo da jornada Mahayana quando falamos sobre os Cinco Caminhos, e iniciamos os versos do Pranidhana-Raja que são focados no que Rinpoche chamou de “bodhisattvas iniciantes” do primeiro e do segundo destes Cinco Caminhos. Concluiremos esses versículos hoje e, para nos ajudar a entender a progressão na jornada do bodhisattva que abordaremos nos versículos de hoje, vamos falar um pouco mais detalhadamente sobre o Primeiro e o Segundo Caminho. 

O Primeiro Caminho: O Caminho da Acumulação

O Primeiro Caminho, o Caminho da Acumulação, trata da motivação sem esforço. Vimos na semana passada que o Primeiro Caminho começa quando nos comprometemos de todo o coração com o caminho Mahayana. Conversamos sobre cruzar o limiar e fazer o voto de bodhisattva e também reconhecemos que, muito provavelmente, haverá um aprofundamento na sinceridade e autenticidade do nosso voto de bodhisattva depois de termos feito o voto cem mil vezes, por exemplo, em nossa prática do Ngondro. 

Em qualquer caso, os ensinamentos Mahayana dizem que alcançamos o Primeiro Caminho (que também é traduzido como “o primeiro caminho mental”), quando alcançamos a “bodhichitta espontânea” como nossa principal motivação na vida. Aqui, “espontânea” significa que esse fator mental surge sem que precisemos nos esforçar para isso, confiando passo a passo em uma linha de raciocínio. Em outras palavras, tornou-se parte de nós. Não precisamos mais nos convencer de que esta é a coisa certa a fazer.

Mais plenamente, no caminho Theravada, alcançamos o Primeiro Caminho quando alcançamos a renúncia espontânea como nossa principal motivação na vida. E no Mahayana, alcançamos o Primeiro Caminho quando alcançamos tanto a renúncia espontânea quanto a bodhichitta espontânea. É importante notar que não alcançaremos realmente o Primeiro Caminho se não tivermos também esta renúncia espontânea. Não passamos muito tempo falando sobre renúncia até agora. E eu sei que isso às vezes pode parecer um assunto delicado para os budistas contemporâneos, já que muitos de nós quer ter o bolo e comê-lo também. Sim, gostaríamos de ter toda a inspiração e benefícios de sermos praticantes do Mahayana. Mas também valorizamos o nosso conforto material e a realização pessoal de vidas comuns. E para muitos de nós, isso cria uma tensão não resolvida no cerne do nosso caminho espiritual. Falaremos mais sobre isso nas próximas semanas. 

Voltando ao significado de “bodhichitta espontânea” como a nossa principal motivação na vida, isto não significa necessariamente que estejamos conscientes ou atentos a esta motivação em todos os momentos a partir de agora. Nem significa que não tenhamos outras motivações de curto prazo, como a motivação de ir à loja e comprar mantimentos. No entanto, mesmo quando não pensamos conscientemente sobre a renúncia ou a bodhichitta, ainda temos a intenção de alcançar a libertação e a iluminação e de beneficiar todos os seres sencientes. Nunca abandonamos essa intenção como nossa principal motivação em nossas vidas, não importa o que façamos. 

Repetindo, o Primeiro Caminho é definido pela nossa motivação primárias e aspiração, e é por isso que para iniciantes como nós, a aspiração é considerada a prática mais importante. Porque a renúncia e a bodhichitta genuínas e espontâneas têm como objetivo, acima de tudo, transformar a nossa motivação e aspiração de aspirações mundanas comuns para a grande aspiração Mahayana da bodhichitta. 

E depois de reorientarmos a nossa motivação primária, o resto do nosso caminho até à iluminação, consiste em cultivar a sabedoria através da audição, da contemplação e da meditação. Como costuma dizer Dzongsar Khyentse Rinpoche, o caminho budista é acima de tudo um caminho de sabedoria. Ele também fala sobre isso em termos de compreensão da verdade. Vamos parar um momento para entender o que queremos dizer quando dizemos perceber a verdade. Tanto nos caminhos Theravada quanto Mahayana, o principal objeto de meditação para shravakas, pratyekabuddhas e bodhisattvas em todos os Cinco Caminhos é o que é conhecido como os 16 aspectos das Quatro Nobres Verdades. Bem, este é um tópico amplo e um tanto técnico, especialmente porque anatta ou não-eu é definido de forma um pouco diferente nas tradições Theravada e Mahayana. Contudo, vamos correr o risco de simplificar demais e dizer que durante os Cinco Caminhos, o que estamos fazendo é cultivar a consciência discriminativa e remover impurezas e visões erradas. Em outras palavras, estamos cultivando a sabedoria meditando na verdade – a verdadeira natureza do eu e dos fenômenos. E no Mahayana, isso significa meditar sobre o vazio ou shunyata, sobre o qual também podemos falar em termos de meditação sobre a sabedoria não-dual ou mesmo de meditação sobre a natureza da mente. 

É claro que, antes de podermos meditar na verdade, precisamos aprender um pouco sobre o que devemos meditar. Precisaremos passar algum tempo ouvindo e contemplando os ensinamentos para compreender melhor esta verdade, grande parte da qual acontecerá em paralelo com a nossa jornada para cultivar uma aspiração mais forte e genuína. E o ideal é que os dois se apoiem. À medida que aprendermos mais, ficaremos mais inspirados em cultivar a aspiração genuína de seguir o caminho. E à medida que a nossa aspiração amadurece, ficaremos mais inspirados para aprofundar a nossa compreensão. Então, voltemos aos Cinco Caminhos. À medida que avançamos no Primeiro Caminho, alcançamos o que é conhecido como shamatha focada nesta verdade ou natureza. Em outras palavras, somos capazes de manter um estado de espírito serenamente calmo e tranquilo, de permanência calma, focado na verdade do vazio do eu e de todos os fenômenos. 

O segundo caminho: o caminho da união

Fazemos a transição para o Segundo Caminho, que é o Caminho da União ou o Caminho da Preparação, quando alcançamos uma compreensão fácil da visão. Portanto, trata-se não apenas de alcançar shamatha, mas tanto shamatha quanto vipassana focados conceitualmente na verdade (mais detalhadamente, os 16 aspectos das Quatro Nobres Verdades). E assim ganhamos o que é conhecido como “sabedoria que surge da meditação”. Em outras palavras, temos compreensão intelectual e meditativa da vacuidade, embora ainda não tenhamos a realização direta, que só vem no Terceiro Caminho, o Caminho da Visão. 

E da mesma forma que no Primeiro Caminho alcançamos a bodhichitta espontânea como nossa motivação primária, no Segundo Caminho alcançamos a certeza ou convicção espontânea em nossa compreensão conceitual da vacuidade. Estabelecemos firmemente a visão do vazio ou da não-dualidade, e esta é agora a principal forma de vermos o mundo. Agora, isso pode não parecer especialmente significativo, mas de acordo com os ensinamentos Mahayana, significa que não renasceremos mais em nenhum dos três reinos inferiores – o inferno, o fantasma faminto ou os reinos animais. Em outras palavras, não estaremos mais dominados por fortes emoções negativas, especialmente a raiva. 

Também vale a pena notar que a atenção plena por si só não é a marca do progresso no caminho Mahayana, porque mesmo antes do Primeiro Caminho, podemos já ter alcançado samatha e vipassana focados em algum outro objeto, ou seja, algo diferente da verdade da vacuidade. . E, de fato, esta realização não é exclusivamente budista. Os meditadores não-budistas também praticam e alcançam samatha e vipassana, embora não focados na verdade identificada no Budismo, em outras palavras, o vazio do eu e dos fenômenos. E é por isso que tanto tempo é gasto na filosofia budista para estabelecer a verdade e debater o vazio. Queremos ter certeza de que temos o objeto correto para a nossa meditação – a visão correta que estamos tentando compreender e realizar – porque, caso contrário, sequer estaremos praticando de acordo com o caminho budista. 

Também na semana passada mencionamos que Rinpoche gosta de falar sobre iluminação em termos de compreensão da verdade. E agora podemos ver que isto é literalmente o que os ensinamentos Mahayana estão dizendo, uma vez que a verdade da vacuidade, ou mais plenamente, os 16 aspectos das Quatro Nobres Verdades, é o nosso objeto de meditação ao longo do caminho até atingirmos a iluminação. Desde a nossa prática inicial, mais conceitual e dualista, de atenção plena e meditação, permanecendo à medida que a nossa prática se torna progressivamente mais não-conceitual e não-dual. 

O Terceiro Caminho: O Caminho da Visão

E então o Terceiro Caminho, o Caminho da Visão, é a realização da visão. É quando alcançamos samatha e vipassana focados não-conceitualmente na verdade. Em outras palavras, quando temos uma realização direta e não-dual desta verdade. Isso também é conhecido como cognição iogue nua. E chegaremos a esses versículos na próxima semana, na Semana 6. 

As dezesseis aspirações no Pranidhana-Raja

Em termos da Aspiração Real no Pranidhana Raja, vimos que existem 16 aspirações. E as primeiras dez delas são aquelas do primeiro e do segundo destes Cinco Caminhos. Então, vamos revisar a progressão. 

  • Aspirações nº 1 a nº 4: Na semana passada, na Semana 4, cobrimos as quatro primeiras dessas aspirações, que tratam de aspirar bem. Aspiramos ser capazes de tomar Refúgio e o Voto de Bodhisattva de forma autêntica, durante os quais também nos envolvemos na audição e na contemplação para desenvolver uma compreensão intelectual da vacuidade. Também estamos cultivando o mérito. A aspiração da bodhichitta, lenta mas seguramente, torna-se nossa principal motivação na vida. 
  • Aspirações nº 5 a nº 9: Agora esta semana vamos cobrir da quinta à décima aspirações. E os números de cinco a nove são o Primeiro Caminho. Porque na quinta aspiração, que é o versículo 22, temos a renúncia espontânea e a bodhichitta como nossas principais motivações na vida. Agora, os comentários sobre o Pranidhana-Raja não são explícitos sobre qual versículo se refere à realização do Primeiro Caminho, mas neste estágio, nosso objetivo está claro. Isso não significa que ainda não tenhamos dificuldades no caminho, por isso as aspirações desta semana começam com a quinta aspiração, que é “Vestindo a armadura da dedicação”. Não há dúvida de que desejamos continuar nesta jornada. Então agora estamos nos perguntando: qual a melhor forma de lidar com os obstáculos e garantir que criamos as condições para o sucesso? E como uma parte importante da nossa aspiração e atividade de bodhisattva é o envolvimento com outras pessoas, um foco significativo dos versículos de hoje é sobre a nossa aspiração em nos relacionarmos com os outros. É claro que continuaremos a cultivar o mérito e a sabedoria à medida que avançamos no Primeiro Caminho, para que a nossa compreensão e a compreensão da vacuidade continuem a se aprofundar e para que possamos progredir ainda mais em nossa jornada de bodhisattva e alcançar o Segundo Caminho. 
  • Aspiração nº 10: Na décima aspiração no versículo 27, que é o último dos versículos desta semana, estamos no Segundo Caminho. Novamente, os comentários não são explícitos sobre onde ocorre a transição, mas aqui o versículo fala sobre como aspiramos a reunir mérito e sabedoria inesgotáveis, e assim nos tornarmos um “tesouro inesgotável de qualidades nobres”. Embora o versículo observe que ainda estamos vagando por todos os estados da existência samsárica. Então estamos no Segundo Caminho. É o estágio mais elevado como seres samsáricos comuns, antes de entrarmos no Terceiro Caminho, começando na próxima semana com a décima primeira das dezesseis aspirações. 

5. Aspiração de usar a armadura da dedicação (versículo 22)

Então, vamos voltar aos versos. O versículo 22, que é a quinta aspiração, é a aspiração de vestir a armadura da dedicação:

[22] Eu levarei a ação iluminada à perfeição,
Servirei os seres de modo a atender às suas necessidades,
Os ensinarei a realizar Boas Ações,
E continuarei assim, por todas as eras que virão!

Aqui Rinpoche explica esta armadura de bodhichitta de duas maneiras diferentes. 

  • (1) A armadura de não perder a inspiração no caminho: Primeiro, ele diz que se trata de não se sentir exausto ou perder a inspiração, de não ficar letárgico, de não desanimar. Ele diz que a razão pela qual ficamos desanimados é porque não somos bem versados no Mahayana. Não temos compreensão suficiente de sabedoria e método. Existem muitos exemplos dados nos comentários. Por exemplo, um bodhisattva ficou tão exausto e desanimado porque sentiu que o caminho estava demorando muito, e o Buda o encorajou dizendo que o tempo é totalmente uma ilusão. Outra história é a de uma mãe que sonha que seu único filho está se afogando em um rio. A mãe não pensa duas vezes e imediatamente se joga no rio para salvar o filho. Mas o bodhisattva, aquele que é adornado com sabedoria, também sabe que isto é apenas um sonho. 
  • (2) A armadura dos seres que servem para atender às suas necessidades: A segunda maneira pela qual estamos falando sobre a armadura da bodhichitta é retornar ao tópico de satisfazer os desejos de todos os seres sencientes, tornando nossa ação ou conduta harmoniosa com as ações daqueles. seres conscientes. Já falamos sobre o bodhisattva do YouTube na semana passada. Nosso objetivo é alinhar nossas ações e atividades com outros seres e, ao mesmo tempo, precisamos também nos engajar na boa conduta para garantir sua felicidade e seu benefício. Então, como disse Rinpoche, quando você está conversando com outra pessoa, você deve compreender a receptividade dela ao que você está dizendo, e o que você diz deve ser algo que ela possa ouvir, compreender e aceitar. Como ele disse, os bodhisattvas realmente não querem ser algum tipo de professor espinhoso que está sempre corrigindo os seres, dizendo coisas como “não faça isso, não faça aquilo”. É muito mais sobre eles aspirarem ser amigos do que inspetores ou quem corrige. 

Num dos comentários sobre o Pranidhana-Raja de Khenpo Tsültrim Gyamtso, ele explicou que este conjunto de versos 22 a 25, que é da quinta à oitava aspirações, também pode ser entendido em termos de como nos comportarmos em relação às pessoas que podemos considerar menores, iguais ou maiores do que nós mesmos em termos de mérito e sabedoria. Esta quinta aspiração no versículo 22 é sobre como nos comportarmos com as pessoas que consideramos inferiores a nós em termos de mérito e sabedoria. Por exemplo, essas pessoas podem estar em circunstâncias menos afortunadas, ser mais novos e menos experientes no estudo e na prática, e assim por diante. E aqui, é fundamental não as desprezarmos. Nós não as desencorajamos. Nós não as menosprezamos. Porque se fizermos isso, anularemos o propósito da nossa aspiração de beneficiá-las. Portanto, temos o cuidado de ter boa conduta e nos comportarmos adequadamente com elas, para encorajá-las e inspirá-las, como no exemplo do bodhisattva do YouTube. Agora, é claro, isso não significa que a forma como as vemos como sendo inferiores a nós seja precisa ou correta. E, de fato, à medida que progredimos no cultivo da percepção pura, perceberemos que ver alguém como inferior ou impuro é em si uma forma de ignorância. 

(1) A armadura de não perder a inspiração no caminho

Vamos falar um pouco sobre essa primeira ideia de vestir a armadura da bodhichitta em termos de lidar com os desafios que surgem no caminho. Falaremos mais sobre como cultivar o mérito e a sabedoria para perceber a visão do vazio a partir da próxima semana. Mas o tema desta semana é perseverança, como podemos enfrentar e lidar com desafios, contratempos e decepções. E aqui vou usar os mesmos quatro estágios do caminho que discutimos na Semana 3. 

  • Pré-caminho: Antes de embarcar na jornada espiritual, somos caracterizados por confusão, egocentrismo e distração. A nossa compreensão de nós mesmos, dos outros e da realidade é fundamentalmente falha, impulsionada pelo dualismo e pelo materialismo. Nossa mente é dominada por pensamentos discursivos e emoções prejudiciais, com pouca presença no momento ou controle sobre os processos mentais. Nossas ações são motivadas principalmente pelo interesse próprio, com considerações éticas ficando em segundo plano em relação ao ganho ou prazer pessoal.
  • Inicial (Principiante): Nesta fase, começamos a nos envolver com a prática espiritual e a obter insights iniciais sobre os principais conceitos budistas, como impermanência, sofrimento e não-eu, embora principalmente em um nível conceitual. Desenvolvemos habilidades básicas de concentração e mindfulness, que ajudam a estabilizar a mente e possibilitam uma presença mais consistente no momento. Eticamente, há uma mudança no sentido da responsabilização pelas nossas ações, impulsionada pelo desejo de evitar danos e beneficiar a nós mesmos e aos outros.
  • Intermediário: Aqui, nossa compreensão evolui de intelectual para experiencial. A contemplação profunda leva a insights reflexivos que tornam os ensinamentos mais relevantes pessoalmente. As implicações da impermanência, do sofrimento e do não-eu são diretamente observadas, transformando nossa percepção e experiência. Nossa prática de meditação se aprofunda, integrando a consciência meditativa na vida diária. As mudanças comportamentais são motivadas por uma crescente compaixão e um desejo de beneficiar os outros, evitando naturalmente as ações prejudiciais e um se envolvendo em atividades positivas.
  • Avançado: No estágio avançado, nossa prática e compreensão estão altamente integradas. Temos uma visão bem estabelecida que incorpora a não dualidade e o vazio. Nossa compreensão intelectual e reflexiva amadurece em realizações diretas. A sabedoria torna-se difundida em todos os aspectos da nossa vida e vemos através da ilusão da existência inerente, reconhecendo a origem interdependente de todos os fenômenos. A linha entre meditação e não-meditação se confunde, com a consciência não-dual contínua se tornando nosso estado natural. A conduta ética surge espontaneamente como expressão natural da nossa consciência iluminada, perfeitamente sintonizada com as necessidades do momento e encarnando a união da sabedoria e da compaixão.

Então, como podemos abordar os desafios e dificuldades no caminho, incluindo dificuldades com outras pessoas, à medida que progredimos no caminho?

  • Pré-caminho: Nesta etapa atribuímos desafios e conflitos interpessoais a fatores externos ou às nossas próprias deficiências, experimentando reatividade emocional e autocrítica. Começamos a ler ou ouvir os ensinamentos e desenvolvemos uma prática fundamental de atenção plena para gerenciar nossas reações, aprendendo a observar as emoções sem identificação imediata e começando a compreender os conceitos de impermanência e carma. Esta fase estabelece as bases para reconhecer a necessidade de uma abordagem mais compassiva e ética às dificuldades da vida.
  • Inicial (Principiante): Neste estágio, desenvolvemos uma compreensão fundamental do Dharma, começando a ver os desafios como parte integrante do nosso crescimento espiritual. Reconhecemos o papel do carma e dos hábitos na formação de nossas experiências e começamos a praticar a compaixão e a bondade amorosa. Através das nossas práticas aspiramos fomentar a empatia e uma preocupação genuína com a felicidade e o bem-estar dos outros, aumentando a nossa capacidade de nos envolvermos positivamente nas relações interpessoais e ver os conflitos como oportunidades para aprofundar a nossa paciência e humildade.
  • Intermediário: Nesta fase, aprofundamos a nossa visão sobre a natureza da realidade, compreendendo a interconectividade e o vazio. Ao contrário do estágio Iniciante, onde o foco está no cultivo da empatia básica, o estágio Intermediário envolve a integração desses insights em uma compreensão mais profunda dos fenômenos. Nossas práticas de meditação se expandem para incluir técnicas mais diferenciadas que enfatizam insights diretos sobre o vazio e a transformação de adversidades em caminhos para a libertação pessoal e espiritual. Isto leva a uma transformação na forma como percebemos os desafios e obstáculos no caminho – não apenas como oportunidades de aprendizagem, mas como meios diretos para praticar a sabedoria e dissolver o ego.
  • Avançado: Aqui, experimentamos uma integração perfeita da nossa compreensão e prática, com uma profunda compreensão do vazio e da não dualidade. Nossas respostas emocionais são caracterizadas pela equanimidade e pela alegre compaixão que agora são estáveis, independentemente das condições externas. Nossas ações são espontâneas e perfeitamente alinhadas com as necessidades da situação, personificando o ideal do bodhisattva. Usamos cada interação como uma oportunidade para beneficiar os outros, demonstrando como viver em completa harmonia com os ensinamentos, sem separação entre a prática e a vida diária.

Ao longo destes estágios, a nossa visão deixa de enxergar os desafios como adversidades pessoais e passa a enxerga-los como oportunidades de iluminação, refletindo a profunda transformação do caminho Mahayana. E esta mudança sublinha a essência do caminho Mahayana, onde os obstáculos não devem ser apenas superados, mas são vistos como parte integrante do cultivo da sabedoria e da compaixão, as qualidades essenciais do bodhisattva. 

(2) A armadura dos seres servidores para atender às suas necessidades

Vamos passar para a segunda maneira pela qual podemos usar a armadura da dedicação. Como devemos cultivar relacionamentos no caminho Mahayana? Como podemos ser um bom kalyanamitra ou amigo espiritual? Agora, este é outro tópico muito rico, que vai ao cerne do significado da Sangha no Budismo. Não podemos abordar isso em profundidade agora, mas, para dar um gostinho queria falar sobre oferecer às pessoas o que elas querem e o que precisam, com base no exemplo de Rinpoche do bodhisattva do YouTube da Semana 4

Esta distinção toca em um aspecto complexo da natureza humana e também o caminho para a iluminação. Nossos desejos são muitas vezes desejos imediatos e superficiais, motivados pelo apego, pela ignorância ou pelo desejo, refletindo nossas respostas condicionadas ao mundo. Considerando que as nossas necessidades, particularmente num contexto espiritual, referem-se ao que nos beneficiaria genuinamente a longo prazo, levando à verdadeira felicidade, à libertação do sofrimento e, em última análise, à iluminação. Abordar esta distinção envolve navegar por vários compromissos e conflitos:

  • Gratificação imediata versus benefício de longo prazo: Muitas vezes queremos coisas que ofereçam gratificação imediata ou alívio do desconforto, mas esses desejos podem não estar alinhados com o que é benéfico para nós no longo prazo. Por exemplo, podemos querer passar os nossos dias no lazer e evitar tarefas difíceis, mas o que precisamos pode ser nos envolver em práticas que nos desafiem e conduzam ao nosso crescimento.
  • Conforto material versus desenvolvimento espiritual: Uma necessidade comum é o conforto e a segurança materiais, que, embora não sejam inerentemente negativos, podem se tornar uma distração da prática espiritual se forem perseguidos excessivamente. A necessidade, de um ponto de vista budista, pode ser cultivar o desapego e o contentamento, concentrando-se no desenvolvimento espiritual em vez de acumular riqueza material.
  • Afirmação do ego versus realização do não-eu: Muitas vezes buscamos a afirmação do nosso ego por meio de reconhecimento, sucesso ou popularidade. Contudo, o que precisamos, de acordo com o Budismo, é compreender o conceito de não-eu (anatta) e perceber que o apego ao ego é uma fonte de sofrimento.
  • Seguindo crenças confortáveis versus ilusões desafiadoras: Podemos querer nos apegar a certas crenças ou pontos de vista que nos fazem sentir confortáveis ou seguros, mas o que precisamos é desafiar nossas ilusões e compreender a verdadeira natureza da realidade como é ensinado no Dharma.

Assim, tal como o Bodhisattva do YouTube, encontraremos estas tensões tanto na nossa própria prática como quando aspiramos beneficiar os outros. Então, quando algo que queremos pode não ser o que precisamos? 

  • Quando perpetua o apego e a ignorância: Se um desejo reforça nosso apego ao mundo sensorial ou aprofunda nossa ignorância sobre a verdadeira natureza da realidade, provavelmente não é o que é genuinamente necessário para nosso avanço espiritual.
  • Quando isso nos afasta da compaixão: Os desejos que nos tornam mais egocêntricos ou indiferentes ao sofrimento dos outros são contrários ao desenvolvimento da compaixão, que é um aspecto fundamental do que precisamos no caminho para a iluminação.
  • Quando isso distrai da atenção plena e da presença: Desejos que nos levam ao consumo ou distração irracionais (como entretenimento excessivo) podem nos afastar da atenção plena e da presença, que são essenciais para a compreensão do Dharma.
  • Quando entra em conflito com a conduta ética: Os desejos que levam a ações conflitantes com a conduta ética (shila) não estão alinhados com o que precisamos para o progresso espiritual.

Abordar estas compensações requer prajña ou sabedoria para ver além dos nossos desejos imediatos, para as necessidades mais profundas que levam à felicidade e à libertação duradouras. Como praticantes ou como bodhisattvas que procuram guiar e beneficiar os outros, precisamos de navegar habilmente nestas águas, por vezes encontrando as pessoas onde elas estão para gradualmente guiá-las no sentido de perceberem e abraçarem o que realmente precisam. Isto também envolve compaixão e ensino paciente, modelar comportamentos e, por vezes, fazer escolhas difíceis que podem não ser imediatamente compreendidas ou apreciadas por aqueles que pretendemos ajudar. E pode ser ainda mais desafiador fazer concessões sábias que beneficiarão os outros se a nossa própria renúncia ainda não for sincera e genuína. 

6. Aspiração de acompanhar outros bodhisattvas (versículo 23)

A sexta aspiração, versículo 23, é a aspiração de acompanhar outros bodhisattvas:

[23] Que eu possa sempre encontrar e ser acompanhado por
Aqueles cujas ações estão de acordo com as minhas;
E em corpo, fala e mente igualmente,
Que nossas ações e aspirações sejam sempre uma só!

Este versículo está basicamente dizendo: que eu possa encontrar outros que ajam e pensem da mesma maneira que eu. Como disse o Rinpoche, isso é muito importante, principalmente para os bodhisattvas iniciantes, ter esse tipo de apoio e companheirismo, de outros que também estão no caminho conosco. Isso pode realmente nos ajudar a alcançar a bodhichitta e também a praticar a boa conduta. Este versículo é sobre como devemos nos comportar com as pessoas que consideramos iguais, aquelas que são iguais no caminho. Com pessoas que são iguais a nós, não devemos ser competitivos, mas sim falar gentilmente delas e nos alegrar com elas. 

7. Aspiração de ter professores virtuosos e agradá-los (versículo 24)

A sétima aspiração, versículo 24, é a aspiração de ter professores virtuosos e de agradá-los:

[24] Que eu sempre encontre amigos espirituais
Que desejem de verdade me ajudar,
E me ensinem as boas ações;
Nunca irei decepcioná-los!

Aqui Rinpoche disse que a aspiração é encontrar um professor Mahayana virtuoso e não desagradá-lo ou decepcioná-lo. Isso não se aplica apenas a um guru Vajrayana ou professor tântrico, como é reverenciado na tradição tibetana, mas também ao professor espiritual virtuoso no caminho Mahayana. Ele também disse que a palavra “mestre” talvez não seja a palavra certa no Budismo. Ele disse “É uma linguagem muito humana, talvez uma boa palavra para algo como Kung Fu”. Mas no Budismo, uma palavra mais apropriada é a palavra sânscrita kalyanamitra, que significa um amigo espiritual ou um amigo virtuoso ou mesmo um amigo afortunado ou sortudo. Nosso chamado guru ou mestre deve ser sempre um amigo virtuoso. 

Aqui aspiramos encontrar esse amigo virtuoso em todos os momentos, em todos os tipos de ocasiões. Por exemplo, no momento em que sentimos vontade de nos comportar mal, ele ou ela pode aparecer de uma esquina. Claro, é um pouco chato, mas esse é o trabalho do nosso amigo virtuoso: evitar que tenhamos problemas. Portanto, nunca os desanimemos. Como disse Rinpoche, esta última linha é tão bonita. Significa algo como: “Que eu nunca parta o coração deles”. E nunca esqueçamos que conhecer um professor já é um sinal de mérito, de que a nossa aspiração passada deu frutos. Seria apropriado adotarmos uma mentalidade apreciativa – nos alegrar, elogiar, fazer oferendas e mostrar cortesia e respeito. Como vimos antes, parte do que torna precioso o nosso nascimento humano é que temos alguém que nos ensina o Dharma. E devemos sempre presumir que existem qualidades nos outros que ainda não conhecemos ou entendemos e que são muito melhores do que poderíamos ter alcançado. Devemos sempre agir com modéstia. 

Esta aspiração de encontrar amigos espirituais sempre e em todos os momentos é como um primeiro passo na jornada para a percepção pura. Em outras palavras, ver o Buda em todos os lugares. Quando aspiramos: “Que eu sempre encontre amigos espirituais”, estamos aspirando que todas as circunstâncias se tornem um ensinamento do Dharma. Alguém que realmente entende a visão da vacuidade, pode ver qualquer coisa como um ensinamento do Dharma. Qualquer coisa pode inspirá-los a ver a verdade. E não me refiro no sentido comum de ser inspirado por uma bela árvore ou por uma vasta paisagem ou por um lindo pôr do sol, ou mesmo por uma arte ou música incrível. Sim, essas coisas podem nos tocar emocionalmente, mas isso não significa que nos inspirem a ter uma visão maior da não-dualidade. Isso não significa que eles nos inspirem a ver o Dharma, a ver a verdade. Considerando que, como disse Rinpoche, se você tiver mérito e sabedoria suficientes, até mesmo a simples visão de uma folha caindo pode trazer a consciência da impermanência e levar à renúncia espontânea. 

Na tradição Nyingma do Budismo Tibetano, há uma história famosa de como o grande mestre Patrul Rinpoche apresentou a natureza da mente a Nyoshul Lungtok, quando ambos estavam deitados no chão e olhando para o céu noturno, fora do mosteiro Dzogchen, no Tibete. Ele disse as frases muito famosas: “Você vê as estrelas no céu?” E naquele momento, Nyoshul Lungtok entendeu – ele foi apresentado à natureza da mente. E, no entanto, como disse Rinpoche, quantas vezes jovens amantes disseram as mesmas palavras um ao outro: “Você vê as estrelas, meu amor?” Mas numa situação como essa, essas mesmas palavras apenas se tornam uma fonte de maior apego e ilusão. 

Então é isso que significa ter o mérito de poder ver todas as circunstâncias como um ensinamento. É a diferença entre Nyoshul Lungtok ser capaz de entender “Você vê as estrelas?” e realizar uma visão do vazio, e o jovem casal ouvindo as mesmas palavras para quem ver as estrelas acaba sendo uma fonte de maior apego e ilusão. A chave é aprender a ver todas as circunstâncias de uma forma que realmente nos beneficie. E é claro que este também é um conselho prático e mundano. Podemos trazer uma mentalidade de abertura e aprendizagem quando enfrentamos desafios e dificuldades, em vez de sermos fechados, defensivos e emocionalmente reativos?

8. Aspiração de ver os Budas e servi-los pessoalmente (versículo 25)

A oitava aspiração, versículo 25, é a aspiração de ver os Budas e servi-los pessoalmente: 

[25] Que eu possa sempre contemplar os budas, diante dos meus olhos,
E ao redor deles todos os seus filhos e filhas bodhisattvas.
Sem nunca se cansar, ao longo de todas as eras vindouras,
Que as oferendas que lhes faça sejam infinitas e vastas!

Ao comentar este verso, Rinpoche disse: “Não sei como articular isto”. Estamos falando aqui de ver milhões de Budas, cada um cercado por milhões de bodhisattvas, agora mesmo, ao abrirmos os olhos, e não no futuro. Como ele disse, você só precisa aprender a vê-los. Não apenas para olhar, mas para realmente vê-los. E não apenas vê-los, mas interagir com eles. Faça oferendas, faça perguntas, receba respostas. E isso é algo que podemos fazer agora.

Rinpoche também disse que o povo Vajrayana adora isso, porque o Vajrayana sempre diz que se você quiser ver o Buda, você realmente precisa ter a bênção do Guru. E da mesma forma, aqui este versículo está dizendo, se você realmente deseja ver esses Budas parecidos com o oceano, você não vai querer partir o coração do seu amigo virtuoso. Então, com estes últimos versículos, vemos como nos relacionarmos com os outros:

  • Versículo 22: para aqueles que consideramos inferiores a nós, tomamos cuidado para não desrespeitá-los.
  • Versículo 23: para aqueles que consideramos nossos pares, não competimos com eles e nos alegramos com eles.
  • Versículo 24: para aqueles que consideramos nossos professores, tomamos cuidado para não decepcioná-los.
  • Versículo 25: para os Budas, desejamos sempre vê-los e nunca nos cansar de fazer oferendas a eles.

Vendo Budas em todos os lugares ao mesmo tempo

Como disse Rinpoche, não vamos esquecer que isso faz parte do Avatamsaka Sutra, o Sutra dos Ornamentos de Flores. Ele disse: “Não sei a definição de ornamento em inglês, mas é algo como arrumar as coisas de forma que de repente tudo fique acentuado e se torne meio especial”. Ao ensinar isso em Vancouver em 2024, ele ergueu uma flor e disse: “Por exemplo, pegue esta flor. Na nossa mente humana limitada, poderíamos dizer que é um ornamento. E inconscientemente, ou talvez conscientemente, o fato desta flor estar aqui pode tornar tudo, todas as outras partes desta sala bonitas, mais suportáveis”. Ele continuou: “A ideia do Sutra Avatamsaka é que você só precisa aprender como adicionar essa joia à sua vida. Por exemplo, se você estiver usando joias como um brinco, você pode adicionar uma safira azul ou uma pérola e tudo dará certo. Agora a orelha também está bonita. Ao lado da orelha, o nariz de repente parece bom. Ao lado do nariz, a boca de repente parece boa. E então tudo parece bem”. Esta é uma visão incomum. 

Rinpoche falou muito sobre a importância da visão não comum, ou de ver além de nossas formas habituais de ver, mesmo nos ensinamentos mais básicos de Vipassana. Ele explica que a palavra sânscrita “vi-“ significa “especial” ou “extra” ou “maior”. Então vipassana na verdade significa ver a realidade ou a verdadeira face dos fenômenos. E aqui no Sutra Avatamsaka temos a ideia de percepção sagrada ou pura, onde vemos tudo como já iluminado, repleto de budas e bodhisattvas, que estendemos ainda mais com a ideia de percepção pura no Vajrayana. 

E há também o elemento de deliberadamente tornar as coisas bonitas e ornamentá-las, por exemplo, nas nossas práticas de oferendas e louvores, como a oferenda de mandalas ou a organização do nosso santuário. Isto remonta à ideia de dupla aspiração e visão sobre a qual falamos na semana passada – já é puro e também posso torná-lo puro. Da mesma forma, aqui temos a dupla aspiração e visão de que já é lindo, mas posso torná-lo bonito. Continuaremos a explorar essa ideia de percepção pura nas próximas semanas.

9. Aspiração de manter o Dharma prosperando (versículo 26)

A nona aspiração, versículo 26, é a aspiração de manter o Dharma prosperando: 

[26] Que eu possa manter os ensinamentos sagrados dos budas,
E ser causa do surgimento da ação iluminada;
Que eu possa treinar até a perfeição nas Boas Ações,
E praticá-las em todas as épocas que virão!

Aqui aspiramos ser capazes de manter o Dharma ou o discurso dos Budas, não apenas por um curto período, mas por incontáveis eras. E também aspiramos que eu seja capaz de iluminar, expressar e ensinar plenamente o Dharma aos outros, para que a conduta do Bodhisattva Samantabhadra, nobre em todos os aspectos, surja no meu fluxo mental e no dos outros. Em outras palavras, aspiro me manifestar como professor. Assim, a progressão nos versos anteriores passou de ver os outros como inferiores, para ver os outros como iguais, para ver os outros como professores, para ver os Budas em todos os lugares. E agora neste verso, meu professor interior, minha natureza búdica está começando a se manifestar. 

10. Aspiração de adquirir um tesouro inesgotável (versículo 27)

O último versículo desta semana, versículo 27, que é a décima aspiração, se refere a adquirir um tesouro inesgotável: 

[27] Enquanto vagueio por todos os estados da existência samsárica,
Que eu acumule mérito e sabedoria inesgotáveis,
E assim me torne um tesouro inesgotável de qualidades nobres –
De habilidade e discernimento, samadhi e libertação!

Agora aspiramos ter um tesouro inesgotável de mérito e sabedoria. Mesmo quando passamos por dificuldades para beneficiar os outros, sempre temos esse tesouro inesgotável para recorrer. E também estamos nos encorajando ao começar a reconhecer que já possuímos a natureza búdica inata e as qualidades búdicas inatas, para que, quando encontrarmos dificuldades ou pessoas que nos menosprezem, possamos nos dar mais crédito e confiar em nossa própria bondade. Agora, como diz este versículo, ainda estamos vagando no samsara, então ainda não estamos no Terceiro Caminho (ou no Primeiro Bhumi). Mesmo assim, adquirimos mérito e sabedoria inesgotáveis. Estamos no Segundo Caminho, o estágio mais elevado antes do Caminho da Visão. E como acontece com todos os versículos, continuamos a enfatizar a acumulação de mérito e sabedoria, porque estas são as causas do nosso progresso adicional no caminho. 

Também estamos nos tornando cada vez mais autossuficientes aqui em nosso caminho e em nossa prática, menos dependentes de circunstâncias externas, mais capazes de incorporar plenamente o ensinamento do Buda de que “Você é seu próprio mestre”. Então, com base no versículo anterior, onde aspirávamos ser detentores do Dharma, agora aspiramos realmente manifestar mais de nossas qualidades inatas de Buda, esse tesouro inesgotável de qualidades nobres, neste estágio final como seres samsáricos comuns antes de alcançar o Caminho da Visão.

Como podemos ser sinceros em nossas aspirações?

Queria abordar uma questão dos ensinamentos de 2016 que Rinpoche deu sobre o Pranidhana-Raja em Taiwan, onde alguém perguntou: “Como podemos ser sinceros nas nossas aspirações?” Eles disseram: “Sinto que quando faço preces de aspiração, nunca são realmente sinceras. E mesmo que eu pense ou sinta que sou sincero, ainda penso, na realidade, que não é sincero. Então, por favor, você pode nos dar sua opinião sobre sinceridade? 

E em sua resposta, Rinpoche disse: “Esta é uma questão muito importante. A questão da sinceridade, se somos sinceros ou não vem do fato de termos ou não o quadro completo, por assim dizer. E isso é difícil.” Ele disse: “Primeiro, vou lhe contar uma coisa prática, porque até eu mesmo, muitas vezes, não me sinto sincero. Mas eu aspiro que, se continuar repetindo minha aspiração, se continuar fingindo, então talvez, às vezes, de vez em quando, seja sincera. Esperamos que esse estado sincero assuma lentamente o controle.” Agora, é claro, isso é verdade para todas as práticas. Se já fosse perfeita, não seria prática. Já falamos sobre os benefícios de tomar refúgio e realizar a aspiração da bodhichitta repetidas vezes, de preferência cem mil vezes em nossa prática do ngöndro, por exemplo. 

Rinpoche continuou: “O verdadeiro problema da sinceridade é que vemos as coisas no contexto do passado, presente e futuro. Sempre separamos esses três. O passado se foi, nunca mais vai voltar. O futuro é um palpite. Bem, você pode ter um palpite, mas nunca temos certeza. E o presente, bem, na maioria das vezes até o presente é controlado por causas e condições. Esta separação ou alienação dos três tempos é a verdadeira causa da nossa falta de sinceridade.” 

Ele falou sobre como nos sutras existe uma expressão de ter uma groselha na palma da mão. Ele se refere à groselha indiana ou ao myrobalan, que em tibetano é chamado de kyurura. Supostamente quando os arhats e seres sublimes olham para o mundo, é assim que o vêem – como se olhassem através da groselha nas palmas das mãos. O kyurura é mencionado no versículo 224, uma das linhas finais do famoso Capítulo Seis sobre sabedoria no Madhyamakavatara de Chandrakirti ou “Entrando no Caminho do Meio”. E aqui diz que a sabedoria do Bodhisattva do Sexto Bhumi é “Tão clara quanto uma fruta myrobalan segurada em sua própria mão”. E isso ocorre porque a fruta kyurura é supostamente transparente e por isso as linhas da mão são visíveis através da fruta. 

Esta é na verdade uma analogia maravilhosa para a autotranscendência ou realização de anatta, ou poderíamos dizer para estar “no mundo, mas não do mundo”. Porque você pode ver o fruto, mas também pode ver através do fruto. É um pouco como olhar para uma janela: você pode ver o vidro da janela, mas também pode ver através da janela e ao mesmo tempo ver a vista além. A verdade relativa – o eu, o vidro da janela, a groselha – não desaparece. Mas o primeiro plano e o fundo mudam, e agora você também pode ver a verdade suprema – o vazio ou a visão através da janela ou da palma da mão atrás da groselha. E à medida que a nossa prática se aprofunda, gradualmente vamos além de focar apenas no primeiro plano ou apenas no fundo e aprendemos a ver as verdades relativas e últimas simultaneamente à medida que progredimos em direção à não-dualidade.

Rinpoche disse que da mesma forma, para arhats e seres sublimes, há muito menos separação entre passado, presente e futuro. Para eles, o passado é agora, o futuro é agora e agora é agora. E, portanto, há muito menos suposições. E ele disse que é claro que realmente precisamos atingir esse nível para realmente gerar sinceridade. Ainda estamos limitados pelo tempo e pelo espaço, por isso há muitas suposições. E sempre que há suposições, é compreensível que a sinceridade seja difícil. Realmente precisamos ouvir mais e contemplar mais a grande visão Mahayana da vacuidade e da não-dualidade, porque a maioria das vezes nas quais não somos sinceros é porque a nossa visão é muito limitada. Ainda não temos a visão panorâmica, a grande visão Mahayana do vazio, que abordaremos na próxima semana, na Semana 6.

Mente de iniciante

Gostaria de encerrar esta semana nos trazendo de volta ao básico e falando um pouco sobre o conceito de mente de iniciante, ou shoshin em japonês. Isso vem da tradição do Chan ou Zen Budismo, mas também é valioso em todo o espectro mais amplo da prática budista, inclusive para nós que estamos no caminho do bodhisattva. A mente de iniciante é uma atitude de abertura, entusiasmo e falta de preconceitos quando nos aproximamos do mundo, quando nos aproximamos de outras pessoas, e mesmo quando nos aproximamos da nossa prática, mesmo no nível mais avançado. Esta mentalidade é particularmente valiosa para manter o frescor e encorajar a perseverança no caminho do bodhisattva, por vários motivos:

  • Abertura ao aprendizado: O caminho do bodhisattva é infinito. Existem inúmeros seres para ajudar e infinitas lições a serem aprendidas. Ter uma mente de iniciante nos mantém abertos a novos ensinamentos e perspectivas, o que é essencial para o crescimento contínuo necessário neste caminho. Acreditamos que qualquer pessoa ou qualquer coisa pode ser uma fonte de aprendizagem e de novos insights.
  • Flexibilidade na abordagem: Com a mente de iniciante, permanecemos flexíveis e adaptáveis, capazes de responder às necessidades dos outros da maneira mais eficaz possível. Não ficamos presos às nossas preferências ou hábitos pessoais. Esta flexibilidade é crucial para um bodhisattva, que procura beneficiar todos os seres da forma mais hábil.
  • Prevenção do orgulho espiritual: O caminho do bodhisattva pode ser longo e desafiador. Alcançar marcos de progresso pode levar ao orgulho espiritual, enquanto a mente de um iniciante nos ajuda a permanecer humildes, nos lembrando que há sempre mais para aprender e crescer, nos ajudando assim a manter o nosso ego sob controle.
  • Revitalização da prática: A mente de um iniciante impregna nossa prática com um sentimento de admiração e curiosidade, evitando que ela se torne rotina ou desempenho mecânico, incluindo nossa própria prática de aspiração. Assim, mantém a nossa prática fresca e significativa, mesmo depois de muitas repetições ou longos períodos de treino. Há um famoso ditado zen-budista: “Antes da iluminação, corte lenha, carregue água. Após a iluminação, corte lenha, carregue água”. E da mesma forma, com a mente de um iniciante, aprendemos como tornar todas as nossas práticas e todas as nossas atividades frescas e vitais.
  • Compaixão através da capacidade de relacionamento: Com a mente de um iniciante, lembramos como era ser um iniciante. E assim nos permite ajudar e relacionar melhor com quem está iniciando o seu caminho, fomentando a empatia e nos permitindo ser melhores como amigos e companheiros espirituais.

Então, como podemos fazer isso? 

  • Prática de mindfulness: Praticar a meditação mindfulness em qualquer nível de prática nos ajuda a cultivar a consciência do momento presente, o que nos ajuda a cultivar uma atitude de abertura e curiosidade sobre nossa experiência momento a momento, essencial para manter a mente de um iniciante.
  • Abrace a aprendizagem como um processo contínuo: Podemos nos lembrar ativamente de que a aprendizagem nunca deve parar. Podemos abordar ensinamentos e experiências com a ideia de que há sempre algo novo ou diferente para compreender, mesmo naquilo que parece familiar.
  • Desafiar preconceitos: Podemos desafiar nossas próprias ideias e crenças sobre a prática e o caminho. Talvez possamos estudar novos textos, ter discussões sobre o Dharma com nossos amigos e companheiros de caminho, ou apenas questionar nossa própria interpretação e compreensão.
  • Cultive a curiosidade: Podemos fazer um esforço consciente para cultivar a curiosidade em nossa vida e prática diária. Podemos cultivar a prática de fazer perguntas e explorar diferentes perspectivas, incluindo as perspectivas de outras pessoas que podem ser muito diferentes de nós. E podemos procurar novas experiências, tanto nas nossas vidas como no âmbito da nossa prática.
  • Pratique a humildade: Podemos reconhecer e aceitar nossas limitações e a vastidão daquilo que não conhecemos. Essa humildade é a pedra angular da mente do iniciante. Isso nos mantém abertos ao aprendizado e ao crescimento.
  • Refletir sobre os fundamentos: E por fim, podemos sempre voltar ao básico e refletir sobre os fundamentos. Podemos retornar regularmente aos ensinamentos e práticas fundamentais do Budismo, abordando-os como se fosse a primeira vez. Podemos procurar redescobrir a sua profundidade e nuances, que de outra forma poderiam ser negligenciadas com a familiaridade. E poderemos descobrir que, de fato, nunca poderemos entrar duas vezes no mesmo rio, e que ensinamentos aparentemente básicos ou familiares podem revelar-se de uma forma completamente nova. 

Então, em resumo, ao valorizar e cultivar a mente de um iniciante, podemos cultivar a humildade, a abertura e a flexibilidade necessárias para crescer na nossa prática e trabalhar eficazmente para o benefício de todos os seres. Esta mentalidade é um antídoto poderoso para a complacência, o orgulho espiritual e a estagnação da nossa prática, garantindo que o nosso caminho permaneça vivo, vibrante e inspirador. 

Então, com isso, vamos reservar um momento para dedicar nosso mérito.

[Pausa]

Obrigado e espero vê-lo novamente na próxima semana.


Nota: para ler as notas de rodapé, clique nos números sobrescritos

Transcrito e editado por Alex Li Trisoglio
Tradução para o português por Alvaro Luis Campos