Alex Li Trisoglio
Semana 1: Introdução à visão do Caminho do Meio
Semana 1: Introdução à visão do Caminho do Meio
Alex Li Trisoglio, 7 de Junho de 2017
Traduzido por Elder Martins e Rafael Mousinho / Revisado por Luciana Marques
Bem vindos à “Introdução ao Caminho do Meio”, tanto para vocês presentes quanto para um grupo ainda maior que estará ouvindo as gravações. Eu gostaria de começar agradecendo a todos vocês por participarem e lembrar que é muito auspicioso que haja tantos de nós interessados nestes ensinamentos. Mais de 1450 se cadastraram, vindos de 54 nacionalidades diferentes, e eu estava pensando que é uma noite de verão adorável e, como Rinpoche falaria, existem muitas outras coisas que poderíamos estar fazendo com nosso tempo e ainda assim aqui estamos ouvindo este ensinamento tão árido e acadêmico. E mais ainda para aqueles de vocês que estão em outras partes do mundo ouvindo logo cedo pela manhã ou de madrugada. Então eu apenas gostaria de agradecer à vocês, e tomo como muito auspicioso que vocês estejam todos aí.
Apenas algumas observações de organização: é possível escrever dúvidas, como alguns de vocês já estão fazendo, mas como há muitos, eu não sei ao certo quantas dúvidas eu vou conseguir responder ao longo do webinar. Mas, por favor, sintam-se livres para perguntar aqui, ou melhor ainda, no website do programa. E essa é a segunda coisa. O website, que é madhyamaka.com, será a nossa ferramenta de comunicação principal nas próximas oito semanas. Então por favor, eu encorajo todos vocês, se ainda não deram uma olhada, vou estar colocando as gravações, downloads, vários textos, também haverá a oportunidade de fazer perguntas e teremos grupos de discussões. Então por favor usem isso. E por favor me dêem feedback: me falem o que funcionou, o que não funcionou e o que mais vocês gostariam de ver.
Eu devo dizer que a razão por estar aqui, se eu tenho alguma coisa para oferecer a vocês, é por causa de Dzongsar Khyentse Rinpoche. Então eu gostaria de começar agradecendo ao Rinpoche tanto por tornar esta oportunidade possível quanto por ter me passado estes ensinamentos por três vezes. Eu os recebi em três ciclos de quatro anos na França, São Francisco e Austrália. Se eu sei alguma coisa e sou capaz de passar a vocês, é por causa dele. Então, obrigado Rinpoche! É meio estranho fazer prostrações ao meu professor quando estou conectado a este fone de ouvido e microfone, mas se você consegue me visualizar fazendo isso, eu me visualizo também.
Eu também gostaria de fazer uma homenagem ao próprio ensinamento, o Madhyamakavatara. Este é um ensinamento incrível sobre a visão Madhyamaka, um dos maiores ensinamentos Mahayana, e na verdade nós tivemos muito pouco tempo para passar por esse texto extenso. Rinpoche o ensinou por quatro anos, e ele disse que mesmo isso foi muito corrido comparado ao ritmo em que é ensinado nos shedras. Entretanto, eu entendo que é fundamental. É realmente importante. E nem todos têm tempo de tirar quatro anos para estudar isto. Então eu gostaria muito de oferecer algo que é condensado e, assim espero, acessível. E se houver interesse, também podemos ir mais fundo nas perguntas e respostas do website e posteriormente também com estudos mais aprofundados.
Obrigado também àqueles que preencheram a pesquisa. Talvez sem surpresa, uma das muitas coisas que muitos de vocês sentem é que a Madhyamaka pode ser muito difícil, bastante acadêmica, sem muita relação com a vida cotidiana. O que pode ser problemático para nós, já que ouvimos que isto é a fundação do nosso caminho e da nossa prática. E se é algo que parece ser muito distante ou muito difícil, como vamos praticar isto? Por isso eu gostaria muito de oferecer algo que seja acessível, prático e relevante. Então, durante as semanas do programa, vamos passando pelo texto, pela lógica e pelos argumentos. Mas as duas últimas semanas serão muito focadas na prática e em como aplicar estes ensinamentos no dia a dia.
Espero que seja acessível e prático, mas não tenho certeza de que seja fácil. E não é que os ensinamentos sejam difíceis em si. É mais que, como o Rinpoche sempre diz, eles vão contra nossos hábitos. Nós temos um hábito profundo de nos agarrar ao eu e aos fenômenos que nos cercam. Então quando estudamos estes ensinamentos, que nos falam que todos esses fenômenos e o eu por si só não têm realidade substancial, pode ser difícil aceitar.
Visão racional [t= 0:05:39]
Rinpoche sempre conta a história da criança que brinca na praia, construindo um castelo de areia. Ela está completamente engajada em construir um lindo castelo de areia, então a maré começa a vir. E a criança fica cada vez mais chateada enquanto a água começa a erodir até destruir completamente o castelo de areia. Claro que se formos os pais dessa criança, nós veremos toda essa situação de uma maneira bem diferente. Nós podemos vê-la como um dia maravilhoso na praia, onde nós construímos castelos de areia, aproveitando o momento, e sabendo muito bem que isso vai passar, que é impermanente . Mas para aquela criança, não foi a mesma experiência. Assim como o Rinpoche diz, talvez mais tarde em nossas vidas, quando nos tornamos adolescentes, começamos a gostar de skate. Nesta fase, o que é interessante é que renunciamos ao nosso interesse em castelos de areia, e agora o que nos interessa é skate. E então um pouco depois, nos tornamos adultos, e falamos sobre nossas casas, nossas carreiras. Depois nos aproximamos da aposentadoria, e Rinpoche diz que aí então nos preocupamos com toalhas de mesa rendadas e saleiros — isso me parece um pouco uma casa de campo inglesa!
O ponto aqui é que a renúncia é ao menos parcialmente natural — existe um certo tipo ou um certo nível de renúncia que acontece naturalmente ao ficarmos mais velhos, conforme vamos passando pela vida. E podemos olhar para trás em nossa juventude e pensar em todas as coisas que eram nossos apegos infantis e entender como fomos pegos naquele tempo, mas para nós agora isso realmente não tem nenhum efeito. Podemos ver sua insubstancialidade. Podemos ver sua impermanência. Podemos ver que os castelos de areia que construímos não tem uma identidade ou realidade inerente, verdadeira. Nós não ficamos apegados a isso. E isso, eu diria, é provavelmente uma maneira racional de pensar sobre a visão. Nós sabemos em algum nível racional que o eu não está realmente lá. E em nossos momentos de sobriedade somos capazes de observar nossas emoções e gerir nossas reações, mas para a maioria de nós, de tempos em tempos ainda ficamos chateados. Assim como a criança fica chateada quando o castelo de areia se vai, se perdemos alguma coisa que nos é importante ou se alguma coisa que é importante se quebra, ainda podemos ficar chateados. Assim, ainda que possa ser racional, não quer dizer que seja fácil praticar.
Visão além do racional [t = 0:08:36]
Mas o que vamos olhar aqui é algo ainda mais que isso: essa é a visão da não-dualidade. Ela vai além do que é meramente racional para algo mais paradoxal, talvez um pouco estranho. Eu gostaria de dar a vocês algumas citações para definir o tom.
Primeiro do Sutra do Coração:
Forma é vacuidade; vacuidade também é forma. Vacuidade nada mais é do que forma; forma nada mais é do que vacuidade. Do mesmo modo, sensação, percepção, formação e consciência são vazios. Assim, Shariputra, todos os dharmas são vazios. Não existem qualidades. Não há nascimento e não há cessação. Não há impureza e não há pureza. Não há diminuição e não há aumento.
Quando ouve isso, você provavelmente pensa: “Isso é um pouco estranho. O que significa dizer que não há impureza e não há pureza? Não há nascimento, nem cessação?”. Isso não se encaixa com nossas experiências cotidianas.
Agora outro exemplo, uma história do Mumonkan (無門関, The Gateless Gate), que é uma coleção de histórias Zen. Esta se chama “O bastão curto de Shuzan” (Shuzans’s Short Staff):
Shuzan estendeu seu bastão curto e disse: “Se você chama isto de um bastão curto, você se opõe à sua realidade. Se você não chama isto de bastão curto, você ignora o fato. E agora, como você deseja chamar isto?”
O exemplo final é do Vajracchedika Sutra (Sutra do Diamante), da seção 21:
Subhuti, não pense que o Tathagata sustente o pensamento: “Eu tenho algo a ensinar”. Nem mesmo pense em uma coisa dessas. Por que não? Quem quer que diga que o Tathagata tem um Dharma a ensinar difama o Buda, porque não compreende o meu ensinamento. Subhuti, ao ensinar o Dharma não há Dharma a ensinar . A isto é chamado ensinar o Dharma.
Como devemos entender essas coisas? Parece um paradoxo sem sentido, talvez irracional. E ainda assim, de alguma maneira há uma ressonância. Nós sabemos que eles estão chegando em algo importante. E ainda assim, talvez seja fácil assumir que seja apenas poético ou expressivo. Mas eu espero que ao final das nossas oito semanas, vocês sejam capazes de entender o que realmente está acontecendo nessas citações, e verem que, na verdade, há muito mais alí.
Como estudar a Madhyamaka [t = 0:11:36]
Aqui vai outra história, também da tradição Zen. É chamada “Uma xícara de chá”, e muitos de vocês talvez conheçam essa:
Nan-in, [um mestre Zen japonês durante a era Meiji (1868-1912)], recebeu um professor universitário que veio inquirir a respeito do Zen.
Nan-in serviu chá.
Ele serviu até a xícara do visitante estar cheia, e então continuou servindo.
O professor observou o transbordar do chá até não conseguir se conter: “Está excessivamente cheio. Não tem como caber mais!”
“Como essa xícara,” disse Nan-in, “você está cheio de suas próprias opiniões e especulações. Como eu posso lhe mostrar o Zen a não ser que primeiro você esvazie sua xícara?”
Esta é a famosa mente de principiante. E claro que a nossa aspiração quando estudamos Madhyamaka é abordá-la com essa mesma mente. Como eu falei anteriormente, isso é difícil ao passo que vai desafiar nossas visões. E nós vamos perceber que embora não sejamos professores universitários, nossas xícaras já estão cheias especialmente quando isso tem a ver com a nossa visão do eu. Então, algo que eu realmente encorajo vocês a fazerem nas próximas semanas, conforme vocês se engajam nessa série de ensinamentos, é realmente perceber: quando vocês acham desafiador? Quando vocês percebem que discordam fortemente? Quando vocês acham que isso provoca vocês? Ou possivelmente até mesmo, quando vocês percebem que estão cansados ou sem interesse, e simplesmente não conseguem se engajar? Porque como Freud disse, mesmo o tédio pode significar que você está ficando defensivo em relação a alguma coisa.
No geral, que tipo de motivação devemos trazer ao ouvir estes ensinamentos? Sim, devemos idealmente começar com uma xícara vazia. Mas na tradição, por exemplo no livro “Palavras do meu Professor Perfeito”, falamos de três diferentes níveis de motivação. A mais baixa é se nos engajamos nos ensinamentos pelo medo de sofrer ou pelo desejo de felicidade. O nível do meio é buscar nirvana para nós mesmos. E a aspiração mais elevada é buscar a perfeita iluminação para todos os seres sencientes. Então eu gostaria de encorajá-los a ouvir com essa motivação mais elevada se você puder, mesmo que nesta fase seja apenas intelectualmente.
Por último, eu encorajaria vocês a tentar não abordar esses ensinamentos com uma mentalidade acadêmica estreita. Como Rinpoche sempre diz, isto não é para escrever um PhD. Isto não é para ser capaz de debater ou argumentar melhor. Isto é para que possamos aplicar a visão em nossa própria prática e em nosso próprio caminho. E também como Rinpoche diz, nós vamos encontrar muitos diferentes argumentos e muitos diferentes oponentes de escolas filosóficas budistas e não-budistas, e ao passo que essas escolas já existiam há várias centenas ou milhares de anos atrás, podemos pensar que elas representam algo que é antigo e até mesmo irrelevante para nós. Como Rinpoche diz, tente, em vez disso, se envolver com eles, como se o que eles estão dizendo fosse uma mentalidade que pudesse ser encontrada viva e bem nos seus próprios pensamentos. Comece a notar como às vezes você adotará visões que soam muito como alguns de nossos oponentes. Porque se você pode aplicar isto em sua própria vida, a si mesmo, talvez haverá algo a mais em jogo para você. Isso ajudará.
Compreendendo a visão [t = 0:15:42]
Uma outra coisa que você pode ter notado se deu uma olhada no roteiro do programa no website, é que para as nossas oito semanas eu usei imagens do “Dez búfalos” (十牛, Ten Ox-Herding Pictures), originalmente também da tradição Zen. E eu gosto delas não apenas pelas imagens e poemas, na verdade eu tenho uma conexão bem pessoal com elas porque antes de conhecer o Rinpoche, antes mesmo de conhecer quaisquer professores vivos do Dharma, isso foi uma das primeiras coisas que eu li quando adolescente e por isso tem um lugar especial no meu coração. Eu acho que isso plantou uma semente que me conduziu ao Dharma. E a décima imagem do rebanho de bois (ox-herding) termina muito lindamente com o sábio no mercado, que é onde nós vamos acabar — tomando nossa visão e vendo para como podemos aplicá-la em nossa vida cotidiana, em nosso trabalho e em nossos relacionamentos.
Mas como a história começa? Eu gostaria de ler para vocês o texto do primeiro dos dez poemas de Kuòān Shīyuǎn (conhecido como Kakuan em Japonês). Este é chamado “A busca pelo touro”:
- A busca pelo touro
Nas pastagens deste mundo, eu afasto as altas relvas, interminavelmente, em busca do touro.
Seguindo rios não nomeados, perdido nos caminhos interpenetrantes de longínquas montanhas,
Minha força decaindo e minha vitalidade exaurida, não consigo encontrar o touro.
Eu só ouço os grilos cantando pela floresta à noite.
E se você conhece isto, saberá que Kuòān Shīyuǎn escreveu um comentário em cada poema:
Comentário: O touro nunca foi perdido. Qual é a necessidade de procurar? Apenas por conta da separação de minha verdadeira natureza, eu falho em encontrá-lo. Na confusão dos sentidos eu perco até mesmo suas pegadas. Longe de casa, eu vejo muitas encruzilhadas, mas qual é o caminho correto eu não sei. Ganância e medo, bondade e maldade, me enredam.
Esta é provavelmente uma experiência bastante familiar para muitos de nós. Assim é o esforço do samsara. Estamos buscando a verdade, nossa verdadeira natureza ou propósito na vida, tentando entender: o que é isso que nos move a fazer tudo o que fazemos e mantém-nos presos no samsara? E o que precisamos entender para encontrar a liberação para nós e para todos os outros? Essa questão toda sobre o que isso significa e como podemos encontrar a verdade nos leva a todo o assunto da filosofia.
Filosofia [t = 0:18:28]
Eu gostaria de dizer algumas palavras sobre filosofia em geral antes de falarmos sobre a filosofia na tradição budista, porque uma grande parte do que a Madhyamaka cobre são questões sobre “O que é a verdade? O que é a realidade?”. E então é claro, aplicando isso a “como deveríamos viver?”. Aqui, o entendimento é que se você está tentando seguir uma maneira de viver que é baseada em algo que não é verdadeiro e não é real, eventualmente você terá problemas. Para aqueles que leram a pré-leitura recomendada de George Orwell, ele toca nesse ponto de forma muito bonita.
Na filosofia, esta noção do que é a verdade é chamada de epistemologia: o estudo do conhecimento, justificação e racionalidade da crença. As tradições de conhecimento ocidental e budista são um pouco diferentes. Na filosofia indiana e budista a tradição é chamada pramana, que significa cognição válida. Nós estaremos tocando nesse ponto em mais profundidade à medida em que passarmos por alguns dos debates. E certamente compreendendo alguns dos grandes epistemologistas budistas como Dignaga e Dharmakirti, o que eles disseram e como foram interpretados pelos comentaristas subsequentes. Algumas dessas interpretações da epistemologia básica, que levaram a muitas das diferenças entre as escolas Madhyamaka tanto na Índia, onde a Prasangika e a Svatantrika se dividiram, e depois quando a Madhyamaka foi para o Tibete, com as quatro escolas assumindo posições diferentes sobre como interpretar Dharmakirti, por exemplo.
Então há um grande elemento histórico que vamos compreender aqui, e então depois vamos conversar sobre as duas verdades, e novamente a epistemologia estará no centro desta conversa. No budismo nós aceitamos, geralmente, percepção e inferência como algo que é válido, mas então quando nossas percepções são válidas? E quando elas são inválidas? Quando podemos confiar no que vemos? Quando podemos confiar no que pensamos? Muito do que vamos tratar é sobre isso.
Eu gostaria de falar um pouco sobre como as tradições filosóficas budista e ocidental têm muito em comum. Se você tiver a chance, uma das pré-leituras que eu sugeri é o livro de Bertrand Russell “História da filosofia ocidental”. É um livro maravilhoso, e em sua introdução ele fala sobre as duas maneiras principais de pensar a respeito da verdade ou conhecimento, pelo menos na tradição ocidental. Primeiro temos conhecimento definido, que na tradição budista nós chamamos de cognição válida, e no ocidente isto é a ciência. Quando nós temos boas evidências, nós temos fatos, podemos ver que algo está lá porque podemos testar. E no outro extremo nós temos dogma a respeito do que está além do conhecimento definido. Tradicionalmente esse tem sido o domínio da religião, que não funciona com evidência. E as pessoas sempre perguntam: “O budismo é uma religião? É uma filosofia? Onde ele se situa?”. Alguns, até hoje, diriam: “É uma ciência?”. Para aqueles que leram a pré-leitura de Donald Lopez, tem uma questão interessante lá. Quanto do budismo deveria ser pensado em termos científicos?
Bertrand Russell diz que entre a ciência e o dogma existe uma zona cinzenta, uma vasta “terra de ninguém” onde a ciência não pode nos oferecer respostas. E onde, em suas palavras, “as respostas confiantes dos teólogos não parecem mais tão convincentes”. E ele lista muitas questões da filosofia clássica, uma das quais é relevante para nós é:
Existe uma forma de viver que é nobre e outra que é ordinária? Ou todas as formas de viver são apenas fúteis? E se há um modo de viver que é nobre, no que consiste? Como podemos alcançá-lo?
Também, por exemplo:
O bem precisa ser eterno para que mereça ser valorizado? Ou vale a pena procurá-lo mesmo que o universo esteja inexoravelmente movendo-se em direção à morte?
Existe algo como a sabedoria, ou é o que parece ser apenas o refinamento último da loucura?
Estas são questões clássicas. Outra que eu amo é a Sócrates, que perguntou algo que deve ser do interesse de todos os aspirantes a bodisatvas: “O que é o bom para a cidade e para o homem?”
Filosofia no budismo [t = 0:23:29]
Como budistas, também nos perguntamos essas questões. Queremos fazer o que é bom. O caminho de oito passos é chamado de “nobre”, o caminho dos Nobres. Assim como os gregos antigos nós desejamos viver no lado nobre, ao invés do ignóbil. Sendo assim, como budistas Mahayana, nossa aspiração é a de bodhicitta. Nós queremos tanto benefícios relativos quanto últimos para todos os seres. Mas o que é o bom? Como sabemos? E quando pensamos no Nobre Caminho Óctuplo que nos foi ensinado, como sabemos que está certo?
No budismo nós não queremos entrar em especulações vagas de filosofia ou metafísica. E de novo, é sabido que o Buda debateu com Malunkyaputta que lhe perguntou dez questões sobre metafísica, como por exemplo, o universo (1) é eterno ou (2) não? Ele é (3) finito ou (4) infinito? A alma é (5) o mesmo que o corpo ou (6) ela é separada? O Tathagata (7) existe depois da morte (8) ou não, ou (9) as duas coisas? Ou (10) nenhuma delas (por exemplo, ele tanto não existe quanto não não-existe?). E aqui o Buda contou a história de um homem ferido por uma flecha envenenada, apenas para dizer: “Veja, eu não quero especular. Eu não quero tomar tempo em questões como essa.” Ele disse:
“Suponha, Malunkyaputta, que um homem está ferido por uma flecha envenenada e seus amigos e seus familiares levam ele a um médico cirurgião. Suponha que o homem então fale: “Eu não deixarei que esta flecha seja tirada até que eu saiba quem atirou em mim; seja ele um Kshatriya (da casta guerreira) ou um Brahmana (da casta sacerdotal) ou um Vaishya (da casta comerciante e agricultora) ou um Sudra (da casta inferior); qual seja seu nome e sua família; seja ele alto, baixo ou de estatura mediana; seja sua compleição negra, marrom ou dourada; qual seja a vila, povoado ou cidade que ele venha. Eu não permitirei que esta flecha seja arrancada até que saiba o tipo de arco que a atirou; o tipo de corda usada no arco; o tipo da flecha; que espécie de pena foi usada na flecha e com qual tipo de material a ponta da flecha foi feita.” Malunkyaputta, tal homem morreria sem saber nada a respeito dessas coisas. Ainda assim, Malunkyaputta, se alguém diz: “eu não seguirei a vida santa sob a orientação do Abençoado até que ele me responda essas questões sobre como o universo é eterno ou não, etc.”, ele morreria com essas questões não respondidas pelo Tathagata.”
Então é muito importante que quando pensamos sobre filosofia, estejamos focados em quais são os tipos de perguntas que nos levarão em direção à liberação, ao invés de apenas especulações genéricas.
No budismo nós sabemos no que estamos interessados. Podemos voltar às quatro nobres verdades: o sofrimento, a origem do sofrimento, a cessação e o caminho. E a segunda verdade, em particular, sobre a origem do sofrimento. Sabemos que a origem do sofrimento é o desejo, mas no que se baseia esse desejo? Sabemos que ele é baseado no eu, no apego ao eu, mas nós realmente entendemos isso? Este será o cerne da nossa investigação. E o ponto onde vamos chegar é a conclusão de que o apego ao eu é baseado numa falsa visão de si mesmo. Não é uma questão de negar a si mesmo. Não é uma questão de ter um eu real que nós de alguma maneira temos que punir como faziam os antigos ascetas Hindus, mas sim que é apenas um equívoco.
Uma outra coisa que eu gostaria de dizer é que quando o Rinpoche falou sobre por que deveríamos estudar Madhyamaka, ele falou que é muito importante termos medidas de proteção para nossa prática, por uma série de razões.
Primeiramente, é ótimo ter devoção, ter inspiração, e devemos sempre almejar sermos inspirados por nossa prática. Mas como Rinpoche diz, as emoções são inconstantes. Podemos nos sentir ótimos num dia, mas talvez depois de algumas semanas já não nos sentimos com vontade de praticar mais. Perdemos nossa inspiração. Então nessas horas precisamos de algo que nos permita manter o curso. Precisamos de medidas de proteção. Precisamos da visão.
Rinpoche também diz que os estágios iniciais da introdução do Dharma no mundo moderno, no Ocidente, já terminaram. O Dharma está em um ambiente muito diferente e muito complexo. Existem muitas escolas diferentes, todas sendo ensinadas simultaneamente no Ocidente. E ao mesmo tempo, o Dharma está se defrontando com a psicologia ocidental, a auto-ajuda, e todos os tipo de teorias New Age. E mesmo agora no Ocidente, as pessoas estão reinterpretando o Dharma e perguntando “o que é budismo secular? Nós precisamos atualizar o budismo para o mundo moderno?”. Como Rinpoche diz, é muito difícil saber no quê devemos confiar. Como vamos saber o que é um caminho autêntico? Por causa disso tudo é que precisamos da visão.
Visão [t = 0:28:18]
Agora vamos falar um pouco sobre a visão. Eu queria nessa primeira sessão falar sobre o que é a visão e porque ela é tão importante. Em primeiro lugar, o que é a visão? A visão é basicamente uma maneira de ver o mundo, uma narrativa, uma mentalidade, uma série de premissas, possivelmente uma perspectiva. Talvez uma teoria, talvez uma história que contamos. Existem alguns exemplos clássicos. A cobra versus a corda. Podemos ver uma corda listrada no chão e não saber. Talvez o quarto seja escuro, sombrio. Pode ser que fiquemos com um pouco de medo. E podemos interpretar mal. Pode ser que na nossa visão, essa coisa que na verdade é uma corda, entendemos errado como sendo uma cobra. E então por causa da nossa visão equivocada, nós reagimos. Nos tornamos emotivos, e talvez saiamos correndo do quarto, gritando. E só depois quando acendemos a luz nós enxergamos que na verdade estávamos enganados. Este é um exemplo. Uma visão então, nesse caso, a visão de que a cobra está lá, quando na verdade é só uma corda, conduz nosso comportamento. Assim, nossa visão, nossa mentalidade dirigem nosso comportamento.
Outro exemplo que o Rinpoche às vezes usa são as pessoas que se perguntam sobre o que significa parecer bonito. Talvez essas pessoas leiam uma revista de beleza. Talvez elas leiam a Vogue, e passem tempo estudando e contemplando todos os artigos, todas as imagens, até que elas tenham um tipo de visão estabelecida em suas mentes sobre o que significa ser bonito. Então elas se engajam em todas as ações que fariam com que elas se pareçam com a própria visão do que é ser bonito. De novo, a maneira como isso funciona — a maneira como tudo funciona — é que começamos com uma visão, quer saibamos ou não que temos uma. Nós temos visões, e nossas ações partem dessas visões. Mesmo na psicologia ocidental essa ideia é bastante familiar, e a maior parte da abordagem cognitiva na psicologia é baseada nisso. Até mesmo Freud falou sobre o iceberg. Ele disse que você pode pensar em uma pessoa como sendo um iceberg, onde você vê um pouquinho na superfície, que é a parte que conseguimos ver — nossos comportamentos — mas existe um monte de coisas acontecendo por dentro, coisas conscientes e inconscientes. A definição do dicionário para visão é:Visão: uma forma particular de considerar ou se referir a algo; uma atitude ou opinião (“fortes visões políticas”).
Sinônimos: opinião, ponto de vista, panorama, crença, julgamento, pensamento, noção, ideia, convicção, persuasão, atitude, sentimento, emoção, conceito, hipótese, teoria.
Visão no budismo [t = 0:31:14]
Existem muitas visões que temos no mundo relativo, como os exemplos da cobra e da corda, e talvez o exemplo da beleza. Mas como budistas, a visão que realmente nos interessa é a visão do eu, pois como dissemos um momento atrás, esta é a raiz do samsara. Porque nós temos a visão de que nosso eu é real, que de alguma forma é ‘verdadeiro’, é de alguma forma o ponto de referência mais importante em nossas vidas, então nós construímos as noções de ‘eu’, ‘meu’, subjetividade e objetividade. E então somos pegos pelos doze elos da originação interdependente, com esperanças e medos, e então sofremos. Por isso, a visão, nesse caso a visão da ignorância — pensando que existe um ‘eu’ — conduz a todo o resto e dá nascimento às nossas ações. E finalmente, de acordo com a tradição, isso também nos conduz aos nossos renascimentos no samsara. Então é isso que temos que arrancar pela raiz.
Em um nível mais relativo, Rinpoche sempre usa o exemplo de “Como a gente sabe se estamos fazendo progresso em nossa compreensão da visão?”. Ele fala sobre as “Oito Preocupações Mundanas” (Eight Samsaric Dharmas), que são:
- querer ser feliz / não querer sofrer
- querer ser famoso / não querer ser ignorado
- querer ser elogiado / não querer ser criticado
- querer ganhar / não querer perder
Basicamente, isso é apego e aversão. Para muitos de nós, esses extremos agora parecem bem longe um do outro. Nós realmente corremos em direção à felicidade e para longe do sofrimento, nós realmente esperamos ganhar e não perder. E na medida em que começamos a “equalizar” isso, como Rinpoche diz, este é um sinal que nossa visão está se incorporando, se tornando mais internalizada.
Essa é a visão mais fundacional, que vamos encontrar em todas as escolas do budismo, incluindo a Theravada. Mas na Madhyamaka nós não só vamos além da visão de um eu pessoal, mas também além de quaisquer outras visões, qualquer visão que tenhamos sobre os fenômenos. Novamente, voltamos à visão sobre o que significa a beleza. O que sucesso significa? O que significa fazer muitas das coisas que fazemos na vida? Nós temos inúmeras visões acerca disso. E nós queremos entender, queremos mostrar — e mostraremos — que todas essas visões sobre os fenômenos são igualmente sem essência, sem uma base. Isso não quer dizer que elas não são muito reais para nós. Isso não quer dizer que elas não nos conduzem, mas somente quer dizer que elas não são substanciais.
A origem de nossas visões [t = 0:34:23]
E se você se perguntar: “De onde eu aprendi essas coisas? De onde eu tirei a minha ideia de beleza? De onde eu tirei a ideia do que é ser bem sucedido na vida? De onde eu tirei a ideia do que é ser um bom amigo, um bom pai ou mãe, ou um bom filho?”. Para muitos de nós, essas visões vêm de lugares que nunca pensamos realmente, de nossas famílias, de nossa infância, de nossa educação, de nossa sociedade, de nossos amigos no Facebook talvez. Nós não necessariamente as analisamos. Nós não necessariamente sequer sabemos que temos essas visões, mas de qualquer maneira, elas nos afetam.
Para fazer outra citação de Bertrand Russell, ele falou:
Desde que os homens se tornaram capazes de especular livremente, suas ações, em inúmeros aspectos importantes, dependeram de suas teorias sobre o mundo e a vida humana, bem como sobre o que é o bom e o que é o mau. Isso é tão verdade nos dias de hoje quanto foi em qualquer época do passado. Para entender uma era ou uma nação, precisamos entender sua filosofia, e para entender sua filosofia precisamos ser nós mesmos, em algum grau, filósofos. Existe aqui uma causalidade recíproca: as circunstâncias da vida dos homens influenciam muito em determinar sua filosofia, mas por outro lado, a sua filosofia influencia muito em determinar as suas circunstâncias.
Muito do que vamos examinar é entender de onde vêm nossas visões, e aprender a sustentar nossas visões de um jeito mais leve. Aprender a ver que elas não são tão sólidas quanto pensamos. Voltando à criança com o castelo de areia, pode ser que a criança se apegue ao castelo de areia com uma visão muito sólida sobre o que ela quer construir e como ele deve se parecer, mas quando já somos adultos, nós aprendemos a soltar isso um pouco.
Visões distorcidas e mapas imprecisos [t = 0:36:32]
E isso também vai nos ajudar a entender um pouquinho sobre onde nossas visões são distorcidas. Onde nossas visões estão equivocadas? Onde nossos mapas do mundo não estão completos. Eu gosto de olhar para mapas medievais nos primórdios das explorações do século XV e XVI, e você geralmente irá encontrar algum mapa em que no canto, o cartógrafo, o explorador, não sabia exatamente o que acontecia ali e escrevia: “Aqui há dragões”. Na Roma antiga acontecia a mesma coisa com os cartógrafos, com a exceção de que lá eles escreviam: “Aqui há leões”. Eu adoro essa ideia de que quando somos confrontados com alguma coisa da qual não temos certeza, quando não compreendemos o que está acontecendo, nós geralmente sentimos medo. Nós simplesmente entramos em pânico. Muito do que vamos estudar nas próximas semanas não é simplesmente sobre estabelecer a visão correta, mas também sobre entender todas as maneiras pelas quais nossas visões são distorcidas, incompletas, e redondamente enganadas. De fato, o jeito que Chandrakirti estabelece sua Madhyamakavatara (Introdução ao Caminho do Meio) é passar por todas as maneiras em que nossas visões podem estar enganadas, e por um processo de eliminação acabamos com a visão correta — a visão do Caminho do Meio.
Visão e prática [t = 0:37:36]
Então agora entramos na relação da visão com a prática. Rinpoche sempre fala sobre visão, meditação e ação ou conduta, e como essas três coisas estão todas relacionadas. E sim, como já vimos, nossa visão determina nossa ação. Embora, como o Rinpoche diz, para alguns de nós isso também funciona da forma contrária. Conforme nos empenhamos na prática, podemos não necessariamente começar com a visão, mas ao longo do prática começamos a ter insights sobre a natureza dos fenômenos e a nossa própria natureza, e então nossa prática pode nos conduzir à nossa visão. Talvez você saiba que no budismo tibetano, a palavra para prática ou meditação é gom (Wylie: sgom / སྒོམ), que significa algo como “familiarização”. Então o que isso significa? Como podemos entender isso?
Para isso, eu gostaria de introduzir uma distinção feita por um professor de Harvard, Chris Argyris, que costumava ensinar na Harvard Business School. Ele diferencia entre o que acreditamos — que ele chama de “teoria adotada” — e o que realmente move nossas ações, que ele chama de “teoria em uso”. Vamos pegar um exemplo. Nós podemos dizer, por exemplo: “Eu sei que fumar é ruim. Eu acho que as pessoas não deveriam fumar. Eu acho que eu não deveria fumar”. Essa pode ser minha “teoria adotada”, mas mesmo assim pode ser que eu ainda fume. Então meu comportamento atual é inconsistente com minha “teoria adotada”. Minha “teoria em uso” e minha “teoria adotada” não correspondem. Estamos falando aqui de duas visões diferentes. Existe uma visão que aspiramos nos aproximar, realizar, e existe uma visão que, neste momento, está guiando o que fazemos.
É a mesma coisa no budismo. O caminho, a prática, é sobre fechar a lacuna entre a visão que vamos estabelecer e a nossa visão atual que tem guiado nossas ações neste momento. Tradicionalmente, nós falamos primeiro em “estabelecer a visão”, que na linguagem de Argyris é desenvolver uma “teoria adotada”. Nesse caso, a visão é não-dualidade — a vacuidade de um eu pessoal e da na natureza dos fenômenos. Mas para muitos de nós, mesmo depois de gastarmos oito semanas estabelecendo a visão e nos convencendo de que isso é verdade, de que isso é certo, de que o que nosso mestre nos falou faz sentido, ainda assim precisamos praticar. Nós temos que trabalhar com essa visão até internalizá-la, até que essa seja a teoria que está guiando nossos comportamentos do dia a dia.
Prática deliberada [t = 0:40:49]
Na psicologia ocidental moderna, descobrimos a noção das ‘10.000 horas’ de prática. É o quanto leva para alcançar a maestria, para realmente internalizar e alcançar o domínio sobre uma visão e um conjunto de prática. A distinção importante aqui é que se, por exemplo, você quiser se tornar um bom tenista, ou um bom jogador de xadrez, ou um bom músico; se você olha para as elites em todas essas diferentes disciplinas, todos eles gastaram muito tempo praticando. Mas o ponto essencial é que a prática deles é uma “prática deliberada”, que é um termo introduzido pelo psicólogo Anders Ericsson. Aqui, “deliberado” significa que não estamos apenas à toa numa quadra de tênis, batendo na bola pra frente e pra trás. Na verdade nós estamos muito conscientes ao trabalhar nosso backhand, ou trabalhando nosso forehand, praticando a técnica correta. Estamos praticando a visão correta de como queremos entregar ou acertar a bola. Porque não é a prática que leva à perfeição, é a prática perfeita que leva à perfeição.
Quando se trata da prática budista, é a mesma coisa. É importante tentarmos, se pudermos, basear nossa prática na visão, porque se estamos praticando sem a visão, então é como um tenista que está apenas batendo nas bolas dentro da quadra. E será difícil realmente dominar nosso jogo. Eu encorajaria todos nós a considerar que esse pode ser um tópico que gostaríamos de contemplar. À medida que você pensa em sua prática atual, à medida que você pensa sobre suas ações e comportamentos no mundo, e então se pergunta: “O que guia o que eu faço? O que guia a maneira que eu penso sobre minha prática? Como estou abordando isso? Na realidade, qual é a minha visão? Qual é a minha ‘teoria em uso’, e quão diferente ela é da visão da vacuidade?”. E em toda prática, seja ela tomar refúgio, praticar bodichita, ngöndro, mindfulness, ou práticas Vajrayana — de certa maneira, precisamos basear todas elas na visão da vacuidade.
A Iluminação é a realização da visão [t = 0:42:56]
Então esse é um resumo geral sobre a visão. Por que a Visão é importante? Porque nossa visão guia nossa ação e nós não vamos mudar nossas ações, a menos que mudemos nossa visão. A visão guia tudo. Como o Rinpoche diz, ela é a fundação. Em outras palavras, ele vai dizer que outra forma de falar sobre atingir a iluminação é realizar a visão. Em outras palavras, é quando não há mais nenhuma discordância entre nossa Teoria adotada e nossa Teoria-em-uso – nossa visão está completamente realizada. Está completamente internalizada. Isto é, em termos práticos, uma outra forma de falar sobre o que é a iluminação. Então, esta Visão de que vamos falar nas próximas oito semanas é muito relevante – diretamente relevante – à própria iluminação.
E a boa notícia é que não é como se precisássemos ser como um cirurgião aprendendo todos os detalhes da anatomia ou um advogado aprendendo todos os detalhes da lei. Só há uma coisa que precisamos entender, a visão da vacuidade ou não-dualidade, a visão do Caminho do Meio. Mas apesar de soar muito simples, na verdade é a coisa mais difícil de entender, porque vai fortemente de encontro aos nossos hábitos e aos hábitos da sociedade.
A visão nos ensinamentos do Buda [t = 0:44:55]
Se você leu o primeiro livro do Rinpoche, “O que faz você não ser budista”, saberá que lá ele estabelece a visão no contexto dos Quatro Selos, que é a versão Mahayana das Três Marcas da Existência: dukkha (insatisfatoriedade), anicca(impermanência) e anatta (não-eu). E o quarto selo acrescenta que o nirvana está além da dualidade ou extremos dualistas. Esses três ou quatro selos estabelecem a mais simples expressão da visão, e em particular, vamos focar no selo ou marca do não-eu, que é fundamental para todas as escolas do budismo. Nestas oito semanas vamos explorar: o que não-eusignifica? Como devemos entender e aplicar isso em nossa prática e em nossa vida cotidiana?
Em termos de como isso se encaixa nos ciclos de ensinamentos do Buda, você deve estar familiarizado com a ideia de que o Buda ensinou os Três Giros na Roda do Dharma:
- O Primeiro Giro foi no Parque dos Veados (em Sarnath), para um público de shravakas, e ele ensinou as Quatro Nobres Verdades e o restante do Tripitaka.
- O Segundo Giro foi na Montanha do Pico dos Abutres, para um público misto de bodhisattvas e arhats, e foi onde ele ensinou sobre a vacuidade. Então a Madhyamaka é um ensinamento do segundo giro, o qual também inclui a Prajñaparamita, o Sutra do Coração, e toda a obra de Nagarjuna e o restante da tradição Madhyamaka.
- O Terceiro Giro foi ensinado em Sravasti e outros lugares, para um público de bodhisattvas, onde ele deu ensinamentos sobre a Natureza de Buda agora associada à tradição de Maitreya.
Vacuidade e Natureza de Buda [t = 0:46:40]
Outra questão que também iremos abordar nas próximas semanas é como compreender qual desses Giros é o ensinamento definitivo do Buda, e qual é apenas provisório. Por exemplo, como Rinpoche diz, em alguns de seus ensinamentos o Buda diz coisas como “Em uma de minhas vidas anteriores, quando eu era um animal…”, e ele irá usar isso para contar uma história, indicando que realmente havia um verdadeiro eu em sua vida anterior. E isso seria considerado um ensinamento provisório, porque no Segundo Giro aprendemos que o eu não existe verdadeiramente. Agora o debate vem mesmo entre o Segundo e o Terceiro Giro em termos de como compreender a relação entre vacuidade e Natureza de Buda. Como vimos no início, na citação do Vajracchedika Sutra (Sutra do Diamante), mesmo lá o Buda diz “Não há Buda”. Então, como podemos entender todos esses ensinamentos?
E a questão sobre vacuidade e Natureza de Buda é muito importante porque como Rinpoche muitas vezes disse, se compreendemos mal os ensinamentos sobre a Natureza de Buda, é muito fácil cair numa visão parecida com a visão Hindu de algum tipo de eu universal ou espírito, alma ou consciência cósmica universal, que é muito parecido com Atman. E isso é na verdade um dos nossos oponentes, que devemos procurar derrotar. Então iremos ver um pouco sobre como diferentes escolas entendem esses Três Giros de maneiras diferentes, e explorar o que podemos aprender a partir daí.
Por que é chamado Caminho do Meio? [t = 0:48:31]
Alguns de vocês podem estar se perguntando porque é chamado de Caminho do Meio. Existem dois jeitos de pensar sobre isso. O entendimento original que vem dos ensinamentos Theravada é que o Buda estava ensinando um caminho do meio entre os extremos da indulgência e ficar preso em prazeres mundanos, e o ascetismo ou automortificação. Como vocês devem saber a partir da história de sua vida, antes dele alcançar a iluminação, os primeiros professores que ele seguiu (incluindo Alara Kalama e Uddaka Ramaputta), eram professores muito ascéticos na velha tradição da Índia. Suas práticas incluíam uma grande quantidade de fome e longos retiros de meditação que tinham como objetivo quase que ‘derrotar’ o eu tentando o matar de fome, um pouquinho como algumas visões do cristianismo medieval. E ele entendeu que essa abordagem não o levaria à iluminação. Esse não era o caminho.
E ainda sustentamos essa visão, mas na Madhyamaka, a visão do Caminho do Meio também se entende como o ato de evitar visões extremas. E o que é uma visão extrema? É o eternalismo ou niilismo. Nós iremos aprender bastante sobre o que esses termos significam — eternalismo é basicamente dizer que algo de fato existe, por exemplo, o eu existe, os fenômenos existem, o castelo de areia verdadeiramente existe — e niilismo é dizer que nada existe, nada importa, quem se importa?. Como Rinpoche diz, esta é a visão que às vezes é mal compreendida com o que os existencialistas franceses falavam.
É importante entender que quando dizemos ‘meio’, meio não é um tipo de média entre bom e mau. É, na verdade, completamente transcendente a esses extremos. Então quando falamos sobre o Caminho do Meio, não é que alguns dias fazemos bem, em outros dias fazemos mal, e meio que empatamos nossas vidas. Em primeiro lugar, é aprender como ir além de todas as ideias de ‘bom’ e ‘mau’. O que isso significa? Como isso se parece?
Assumindo a responsabilidade pela visão e prática [t = 0:50:47]
Eu também gostaria de falar um pouco sobre a importância de estabelecer a visão para nós mesmos. Vários dos ensinamentos nos Pali Suttas demonstram a ideia de assumir a responsabilidade e a prestação de contas pessoal por seu caminho. O Buda disse:Cada um é o seu próprio refúgio, quem mais poderia ser o refúgio?
[Dhp, XII 4] Você deve fazer fazer o seu trabalho, pois os Tathagatas apenas apontam o caminho.
[Dhp, XX 4]
Então isso é como dizer que ninguém mais pode nos liberar. Nós temos que liberar a nós mesmos. Mas ao fazer isso, também precisamos desenvolver consciência sobre a visão sobre a qual estamos confiando. Precisamos prestar contas a nós mesmos por nossas visões assim como por nossos atos. Existe outro sutta famoso, o Kalama Sutta, onde pessoas do clã Kalamas perguntam ao Buda: “Como devemos confiar em seus ensinamentos?”. Ele respondeu:Não sejam conduzidos por notícias, tradições ou boatos. Não sejam conduzidos pela autoridade de textos religiosos, nem pela mera lógica ou inferência, nem considerando as aparências, nem pelo prazer de opiniões especulativas, nem por possibilidades aparentes, nem pela ideia: ‘Este é nosso professor’. Mas ó Kalamas, quando vocês souberem por si mesmos que certas coisas são nocivas e erradas e más então desistam delas, e quando souberem por si mesmos que certas coisas são saudáveis e boas, então aceitem-as e sigam-nas.
[AN 3.65]
A ideia aqui é que não estamos abordando a Madhyamaka como apenas algum tipo de instrução, algum tipo de texto sagrado em que pretendemos seguir uma série de mandamentos. Estes ensinamentos são algo que devemos testar e, então, internalizar, continuando em nossa prática até que compreendamos sua essência. Aqui está outra fala famosa do Buda:Não aceite nenhuma das minhas palavras pela fé,
Acreditando nelas apenas porque eu as disse.
Seja como um especialista comprando ouro, que corta, queima,
E examina criticamente seu produto em busca de autenticidade.
Apenas aceite o que passa no teste
Provando ser útil e benéfico em sua vida.
E aqui há outro ensinamento chamado As Quatro Confianças que se baseiam nisso:Confie no ensinamento, não na pessoa;
Confie no significado, não nas palavras;
Confie no significado definitivo, não no provisório;
Confie em sua mente de sabedoria, não em sua mente comum.
Esta é uma outra maneira de dizer que nós deveríamos realmente aspirar e trabalhar duro para entender e internalizar a visão. Porque quando passamos pelo dia a dia de nossas vidas, ou quando estamos sentados fazendo nossa prática, não podemos continuar perguntando à nosso professor ou lendo livros para encontrar respostas. Precisamos saber ali, na hora: o que iremos fazer? E para que saibamos isso, temos que ter a nossa visão internalizada. Temos que carregá-la conosco a todo momento. Ela precisa ser nossa. Não a visão de uma outra pessoa. Não algo que ouvimos dizer. Não apenas algo que lemos, ou que fomos ensinados. Mas uma visão que internalizamos. Então eu realmente gostaria de encorajá-los a abordar estudo e estes ensinamentos dessa maneira.
Não se apegando à visão [t = 0:54:22]
Mas ao mesmo tempo, Buda também disse que não podemos nos apegar a estes ensinamentos. Sim, nós precisamos internalizá-los, mas eles mesmos são algo que iremos abandonar. Ele falou sobre isso:Ó bhikkhus, mesmo essa visão, que é tão pura e tão cristalina, se vocês se agarram a isso, se vocês afagam isso, se vocês entesouram isso, se vocês se fixam a isso, então vocês não compreendem que o ensinamento é como uma jangada, que é para atravessar, e não para se apossar.
[MN 22.13]
É a mesma coisa aqui com os ensinamentos da Madhyamaka. Queremos abordar estes ensinamentos como uma maneira de atravessar ao outro lado, não para que possamos desenvolver uma filosofia complexa própria. E de fato, à medida que vamos avançando nestes ensinamentos, vamos compreender que muito do que o texto está nos dizendo é que estabelecer a visão não é tanto uma questão de construir algo novo, mas de desconstruir nossa confusão e nossas visões equivocadas.
E isso se aplica até mesmo à racionalidade em si. Rinpoche frequentemente fala sobre a jornada do irracional ao racional e ao além-do-racional. Sim, sabemos que não queremos confiar em crenças irracionais, confusão e visões errôneas. Ainda assim, iremos usar a racionalidade deste estudo da Madhyamaka, essa lógica, e essa análise, para refutar e combater todas as nossas visões confusas e equivocadas. Mas esta abordagem em si — lógica e racionalidade — é apenas outra jangada para atravessar o rio. Porque onde estamos indo, como vocês viram naquelas citações iniciais sobre a não-dualidade no Sutra do Coração e no Vajracchedika Sutra, está além da racionalidade. Está além do pensamento. Está além da fala, do diálogo e da linguagem.
E ainda assim, ao mesmo tempo, não vamos cair na irracionalidade. Ao invés disso, do mesmo modo que aprenderemos a ir além de todos os outros extremos dualistas, nós deveremos transcender tanto a irracionalidade quanto a racionalidade para chegar na essência da compreensão. Por isso essa jornada será um pouco paradoxal às vezes, porque gastaremos um bom tempo desenvolvendo nossa lógica, raciocínio e refutação e então ao final, nossa irracionalidade e nossa racionalidade irão, as duas, dissolver.No instante em que duas bolhas se unem, as duas desaparecem. Brota uma lótus.
— Kijo Murakami (1865-1938)
A prática é 98% da jornada [t = 0:56:32]
O Rinpoche também coloca isso de um jeito diferente. Ele diz: “sim, a visão é essencial — estabelecê-la e estudá-la, é essencial. Nós precisamos disso. Ela é a fundação”. Mas então ele diz: “Não se enganem — vocês não chegarão a lugar algum apenas estabelecendo a visão. O que vocês mais precisam é praticar. 98% da nossa jornada é prática”. Mas como dissemos anteriormente, a prática precisa estar baseada na visão correta, caso contrário o caminho não os levará a uma boa direção.
Minha aspiração para todos vocês é que possamos aprender a internalizar o Dharma. Ir do ponto de ter uma autoridade externa — ter todos estes ensinamentos vivendo fora de nós — ao ponto de ter uma autoridade interna, uma Madhyamaka interna, uma não-dualidade interna a que podemos recorrer e que podemos carregar conosco o tempo todo. Rinpoche sempre brinca e diz: “Não seria maravilhoso se nós tivéssemos algumas regras bem simples no Budismo, como em outras religiões? Por exemplo, rezar cinco vezes por dia numa determinada hora, ou apenas usar meias, ou nunca comer batata assada. Ou algo como isso”. É claro, nós podemos ter regras como essas e essas regras são fáceis de seguir, mas espero que vocês possam vejam que uma abordagem baseada em regras é muito diferente do que estamos fazendo aqui. Porque nossa visão é muito mais extensa que isso. Não queremos apenas uma série de regras. Queremos um entendimento fundamental do eu ou, mais precisamente, a falta de existência última do eu — o que irá então guiar todas as nossas ações.
Então essa é realmente minha aspiração para vocês para as próximas oito semanas: entender a visão, entender como aplicá-la em sua prática — não é dar a vocês uma nova prática, mas é talvez dar uma nova perspectiva às suas práticas já existentes. E então dar um sentido para o que a visão significa, para como viver no mundo — pós-meditação, trabalho, família, relacionamentos. E em um nível emocional, como podemos tornar a visão nossa amiga? Como podemos nos tornar realmente confiantes na visão e usá-la como uma companheira, um guia, um suporte — algo em que podemos realmente colocar confiança? Realmente fazer amizade com a visão. Este é um outro aspecto de como eu gostaria de encarar isto.
E na verdade eu diria que muito do desafio de como o Budismo pode ser mal interpretado no Ocidente é porque as pessoas não fizeram amizade com a visão. Elas vêem isso como assustador. Elas veem dragões. E como resultado, ouvimos por aí muitos ensinamentos que são sobre andar suavemente, falar gentilmente e estar consciente — que não são realmente baseados na visão.
Então, obrigado! Isso estará no website e eu encorajaria vocês a visitá-lo para se informarem e tudo mais. Na próxima semana vamos passar pelos cinco primeiros capítulos do Madhyamakavatara de Chandrakirti (Introdução ao Caminho do Meio). Eu os encorajo a ler antes, se tiverem a oportunidade, e nos vemos novamente na semana que vem.
© Alex Li Trisoglio 2017
Traduzido por Elder Martins e Rafael Mousinho
Revisado por Luciana Marques
Page last updated July 1, 2017